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sábado, 7 de abril de 2012

As aventuras de Augie March

Não gosto muito da idéia de escrever sobre As aventuras de Augie March e gosto menos ainda de saber que existem muitos Augie March por aí - tem até uma banda. Fico enciumada. Tudo isso demonstra a popularidade do personagem, que causa nos outros o mesmo efeito que causou em mim: a impressão de que o livro fala de si. A identificação avança de tal forma, que depois de um certo ponto parece que o destino do personagem revelará alguma coisa sobre o seu próprio destino. Quem sabe todos os que se identificam com Augie tenham em comum uma certa passividade e adaptabilidade, um certo ar de pessoa "adotável" e seja bom ouvinte. Por não julgar as pessoas e agir conforme as circunstâncias, elas colocam Augie dentro dos seus sonhos, e vêem nele um seguidor ideal; o que ele corresponde, mas só até certo ponto:

"Ou você estava em busca de um frisson? Isso é hora de sair em busca de frisson, quando o resto do mundo está procurando por um abrigo pra se proteger? Você podia procurar isso na montanha-russa, no tobogã, no trem fantasma. Vai pro parque de diversões de Riverview. Mas espera aí. De repente eu me dei conta de uma coisa sobre você. Você é do contra, tem a oposição dentro de você. Você não sai deslizando suavemente por tudo. Só dá essa impressão."
Essa era a primeira vez que alguém me dizia algo que se pudesse chamar de a verdade ao meu respeito. Eu a senti com força. Senti que, como ele disse, eu tinha de fato a oposição dentro de mim, e um enorme desejo de oferecer resistência e de dizer "Não!" que não podia ser mais claro, que era uma sensação tão inequívoca quanto uma pontada de fome. (....)
Ele continuou, mas meus pensamentos tomaram rumo próprio. Não, eu não queria ser o que ele chamava de predeterminado. Nunca aceitei a predeterminação e me recusava a ser o que as outras pessoas queriam que eu fosse. Já tinha dito "Não" para Joe Gorman também. Para vovó. Para Jimmy. Para um monte de gente. Einhorn tinha visto isso em mim. Porque ele também queria exercer influência.
p.168

O livro demorou para me conquistar. A princípio, ele me pareceu um desfile interminável de nomes e tipos, como se fosse uma dessas introduções que descrevem personagens de uma peça. O início do livro fala do início da vida de Augie, e é como se ele ainda não existisse, fosse apenas um pretexto para o ambiente e pessoas à sua volta. Depois você se dá conta que a narrativa do livro mostra o desenvolvimento pessoal do próprio personagem; no começo da vida, ninguém sabe realmente quem é. A docilidade de Augie faz com que ele se deixe levar, o que o coloca em situações que um rapaz pobre e orfão normalmente não viveria.  Transitando entre diversos mundos, num momento imerso em luxo e no instante seguinte em quartos imundos e sem qualquer perspectiva. Quando um capítulo do livro se encerra, uma fase da vida dele se encerra também.

Não é um personagem que tenha para onde ir - todos parecem saber quem são e para onde vão, menos Augie. Muitos lhe apresentam projetos interessantes, maneiras fáceis e definitivas de conseguir conforto, riqueza, nome, bom emprego e amor. Só que para usufruir dessas coisas, ele sempre precisa pagar um preço: deixar de lado algo que ele nem sabe se o que é e porque é tão importante. Às vezes o problema se apresenta como um abandono as origens ou a adoção de uma maneira nova de se relacionar. Talvez por serem sonhos emprestados, ele se mostra incapaz de dizer SIM de forma permanente. Acredito que pessoas que gostem de certezas se irritem e se angustiem com um protagonista assim - para os que amam o livro, é justamente esse o motivo de atração. Quando tudo parece ir bem, chega um ponto que algo acontece, ou que Augie faz por onde estragar tudo, e o que parecia certo acaba como se nunca tivesse existido. Ele é radical na sua negação e o livro é cheio de recomeços.

É um livro cujo interesse está no desfile dos tipos, a mudança de ambiente, o desaparecimento e reaparecimento de pessoas, as ironias e rasteiras que o destino prega. Alguns personagens merecem apenas alguns parágrafos, enquantos outros aparecem sempre, nem que seja apenas através de suas lições. À medida que amadurece, Augie se torna mais consciente de quem é, o que diminui sua adaptabilidade e o ritmo de suas mudanças. Impossível não ver nisso o próprio caminho da maturidade, quando nos tornamos mais estáveis e menos aventureiros à medida que nos conhecemos. Gradualmente o livro muda de tom; Augie começa a pensar e escolher mais, e chega a ensaiar uma filosofia de vida. Mesmo com reflexões interessantes, a mudança de tom não me agradou muito, e eu teria cortado pelo menos cem páginas do final (e ainda assim seria um calhamaço). Não é o primeiro e nem o último livro excelente que parece se perder no fim, cito aqui o caso de Orlando. E tal como Orlando, Augie March está no meu rol de personagens inesquecíveis.

2 comentários:

  1. Que leitora excelente você demonstrou ser neste livro.

    Eu sou um dos apaixonados em Augie March, apesar de, como te disse por e-mail, não ser meu romance preferido de Bellow.

    Eu não saberia ser tão preciso quanto você neste seu ótimo post. As cem páginas cortáveis é uma recorrência em todos que leem Augie (Roth disse algo assim, Coetzee tembém).

    Mas, se você se aventurar a ler mais um ou dois Bellow, vai saber que essas cem páginas são justificáveis por serem exuberantes, excessivas, festivas. Nelas, o valor máximo é a felicidade da escrita que aparece em cada página, a vaidade de Bellow em se mostrar recém dono de sua mestria e de sua voz própria.

    Augie é um dos primeiros livros de Bellow, o terceiro ou quarto, se não me engano, e o primeiro realmente bom e genial. E a intenção do excesso de personagens do início foi, a meu ver, a de fazer vênia ao sangue oriental de Bellow, repetindo os caudalosos começos carregados de nomes dos romances russos. Um aparte interessante em um romance que é tido como O Grande Romance Americano do século, como menciona o Hitchens do prefácio.

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    1. Obrigada, Charlles, estava doida pra ver o que você comentaria. Você sabe que estou lendo outro Bellow agora, apesar de ser contra os meus princípios. Li o prefácio de Hitchens quando já havia publicado o post, o que foi bom. Fiquei insegura, porque Hitchens coloca Augie com um viés totalmente diferente. E também porque ele revela muito da história e não gosto de spoilers.

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