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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Música para camaleões

Para a Borboleta

Eu não me sinto muito à vontade falando de um livro do Capote. Música para Camaleões é um livro de contos, dá pra pensar que é uma coisinha desprentesiosa. Alguns contos falam da infância, outros de encontros e tem uns causos mais parecidos com realismo fantástico. O ritmo da escrita é delicioso. Capote faz qualquer narrativa parecer simples - e quem escreve sabe que isso é o que há de mais difícil. Só o início do Música para Camaleões é capaz de provocar a empatia de qualquer pessoa que possua um sentimento artístico:

Então, um dia comecei a escrever, sem saber que estava me escravizando para ao resto da vida a um senhor nobre, mas impiedoso. Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote - e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação. (Introdução)


Ou seja, antes mesmo do livro começar ele já nos dá uma aula sobre o que é uma vocação. Da disciplina em anotar tudo o que via de interessante, a sutileza de uma frase bem construída, a consciência de que não existe algo sem importância desde que se saiba como contar. E fala da crise, da vontade de rever tudo e chegar no simples, mesmo quando já era um escritor famoso e ninguém via o que corrigir no seu estilo. O Música para Camaleões é fruto dessa vontade, de chegar direto ao ponto. Os contos são ótimos e aparece muita gente famosa por lá: Marilyn Monroe tem uma história só dela, o assassino de Sharon Tate tem outra. Ainda que como coadjuvante, a gente nota um Capote bon vivant, que conhece as pessoas importantes da sua época, viaja pelo mundo, bebe, entra em crise e se diverte. Somando isso à aparente simplicidade da escrita, pode dar a impressão de que qualquer um que frequentou os lugares que ele frequentou poderia escrever aquilo. Aí eu lembrei de Jorge Guinle.

Uma vez eu estava conversando com um homem e Jorge Guinle apareceu na conversa. Ele disse que Guinle era a pessoa que ele mais admirava/invejava no mundo. "Como? Aquele idiota?" Aí eu comecei a listar os motivos porque eu não gostava de Jorge Guinle - um sujeito que vive do passado, que só dá entrevistas para falar dos bons tempos e o auge de Hollywood - que ele viu às custas de toda fortuna que ele tinha. O outro argumentou: "Um homem que dormiu com Rita Hayworth, Ava Gardner, Kim Novak, Marilyn Monroe..." Eu, indignada "ou seja, uma pessoa cujo único mérito da vida foi ter dormido com outras, só que famosas". Aí a discussão acabou com um:
- Você é mulher. Você nunca entenderá o que Jorge Guinle significa.

Mas é só uma lembrança, uma associação boba. Porque um Guinle jamais chegaria aos pés de Capote. Hoje eu até sou capaz de até entender alguém torrar a fortuna da família para viver intensamente; o que não posso aceitar é ele ter vivido tudo isso e trazer dessa época apenas "com Janes Joplin eu até poderia ter dormido mas ela estava chapada demais e nem teria graça". Capote era claramente interessado em pessoas. Assim como o livro tem nomes muito conhecidos, também conta a história da diarista passando de casa em casa, das tias que o acolheram quando criança e tinham um quarto alugado, o policial da cidadezinha que investiga assassinatos em série (Pequenos Ataúdes, um conto imperdível pra quem gosta de histórias policiais), a dona do bar que se casou de novo. Eu o definiria como um flaneur e não como um bon vivant. É difícil ler Capote e não ter vontade de encontra-lo no terraço, ouvi-lo contar histórias e saber que por debaixo daquela sofisticação há um homem sensível que percebe coisas que os outros podem nem saber que existem.

Durante todo esse tempo o espelho negro ficou pousado no meu colo, e mais uma vez meus olhos sondam suas profundezas. Como é estranho ver aonde nos levam nossas paixões, a persistência futigante com que nos perseguem, impingindo-nos sonhos rejeitados, destinos inoportunos. (Música para camaleões)

2 comentários:

  1. Caminhante, o olhar sensível sobre o humano é o que caracteriza os escritores que mais gosto. E por sensível eu referencio os que apontam todas as mazelas, crueldades, mesquinharias, mas preservam ainda uma certa ternura por todas as limitações.
    E, oh, você não poderia encontrar uma citação mais precisa para a imposição de escrever.

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  2. fernanda, queria muito ter tempo de comentar nesse post, mas estou aperrengado. Vou encomendar esse título via net. Tenho aqui o "Cães Ladram" e "A Sangue Frio", do Capote, os dois muito bons. O primeiro segue a linha de "Música para Camaleões", com toda a acidez e o afiamento da prosa de Capote. O segundo, já é completamente diferente, mostra um Capote sóbrio, comedido, com vistas a se alçar ao cânone dos grandes escritores. O primeiro, que na certa iria muito te agradar, tem textos deliciosos sobre Marlin Monroe e Marlon Brando.

    No mais, ótimo essa tua resenha.

    Abraço!

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